sexta-feira, 27 de março de 2009

Cicatriz ou qualquer coisa que se sinta.



A quem interessar possa o título deste texto (a quem ouso dedicar a cobra inteira, no encalço de Baudelaire), resolvo por aqui discutir minhas partes com vida própria.
Perceber que meus gestos inanimados constituem parte funcional do tédio (meu tédio) foi, desta forma intensa: assustador. Conflitos que surgem durante "passagens" (como se existisse uma portada através da qual mudássemos) geram desconstruções e a depender da intensidade de tais desconstruções o chão se liquefaz. Isto ocorre neste instante em que escrevo, tal qual não aconteceu de súbito, a percepção ao longo desta semana (atípica por ser inusitada...) me fez retroceder e enxergar fatos e pessoas que fui (eu) num passado que insiste em despertar melancolia e nostalgia. É como a seiva bruta no tronco de uma Sequóia: flui protegida por várias camadas de caule que mostram outra árvore que não a real fragilidade da sua existência. O amor, o desejo e em primeira análise a vontade aniquilaram-se de modo silencioso, através de circunstâncias diversas, deixando seus cadáveres formolizados, silenciosos, paralíticos e com os olhos abertos a enganar-me. Assim foram preenchendo as frestas da consciência, de vidro: escondendo a profunda indiferença e os aparentes sentidos atribuídos as coisas. Deste modo, o trabalho, as pessoas, "as coisas de que se gosta", foram assumindo corpo e comandando, cada uma por sua vez, o que se compunha neste contexto de: vida. É como cada um que entrava na cabeça de John Malkovich, é como uma coletividade de "eus" me vestindo, de acordo com a conveniência de cada qual que queira o seu "meu-eu". "Assim, não se pode aprender a amar, tal qual não se pode aprender a morrer" dito isto por Zygmunt Bauman, não se pode aprender a mudar: muda-se, como ama-se, como morre-se. Também não se pode aprender a desconstruir-se...

"Somos mais livres durante nosso tempo livre do que enquanto trabalhamos? É inegável que temos um papel ligeiramente diferente, pois enquanto somos produtores em nossas horas de trabalho, somos sobretudo consumidores em nosso tempo livre. No entanto não somos mais livres ao desempenhar um papel ou outro, e um não é necessariamente mais significativo que o outro. Como já mencionado, o tédio não é uma questão de trabalho ou de liberdade, mas de significado. Um trabalho que não confere muito sentido à vida é seguido por tempo livre do mesmo tipo". Lars Svendsen escreveu isto em "Filosofia do Tédio" e esta sensação de aprisionamento ao texto, assustado com a veracidade destas conclusões foi a descoberta de uma porta trancada, de uma janela fechada e de um lugar repleto de pedaços de "eu" entre outros tantos mortos. Seria talvez como Kundera disse "Hoje somos todos semelhantes, todos unidos por nossa apatia compartilhada em relação ao nosso trabalho. Essa mesma apatia tornou-se uma paixão. A única grande paixão coletiva de nosso tempo", este trecho encerra em si nossa pequenez, nosso eterno "pacto com a mediocridade", nosso eterno ser quem não somos para parecer sermos aquilo que nunca fomos. É como já disse Bernardo Vieira (bem citado por Cristhiano) "É disso que as ruas de São Paulo tentam convencer quem passa por elas: que está em outro lugar, num esforço inútil de aliviar a tensão e o incômodo de estar aqui, o mal-estar de viver no presente e de ser o que é". Esta náusea diária, liquidificada com insônia, este prazer de coisas que não têm vida, esta substituição inútil da solidão pelo gasto, esta perturbadora onisciência dos outros em nós, este momento de sentar em pleno asfalto e seguir o caminhar das baratas pelos bueiros, a percepção da falta de sentido: o sonho de Pessoa "Ver-me, ao mesmo tempo, com igual nitidez, do mesmo modo, sem mistura, sendo as duas coisas com igual integração entre elas..." faz-me, como já dito anteriormente, observar que tudo é igual a tédio. Afasia do meu instante que não ocorre: palavras alheias (sempre as palavras dos outros). Avolia.

"Sou a soma de todas as transgressões de mim mesmo, isto é, de tudo que faço. O que faço não é exterior a quem sou; ao contrário, pode-se dizer que é a expressão mais explícita disso." Este contraste, proposto por Svendsen, que por não ser menor não se mistura aos outros, acorda-me e impera questionando os dogmas, as "leis naturais" que carregamos conosco como herança da vida dos outros que decididamente não escolhemos seguir. Neste momento não temos a clareza das escolhas, pois a maioria do que vivemos não passa de um déjà vu mórbido, colorido, atemporal. Eles já viveram isso e assim vivemos novamente através deste mesmo momento vidas que não foram nossas mas institucionarizaram-se como regras, leis, intuições de uma verdade que nos foi atribuída como absoluta. O enfrentamento destas percepções me põe de frente à mim, como num reflexo infinito de dois espelhos - "É uma bebedeira de não ser nada" - como já escreveu Pessoa.

Fico, no entanto, com um pedaço de papel escrito a mão. Fico "esperando para começar o meu dia, mesmo que seja com muitas horas de atraso do meu despertar". Permaneço sentado no topo da torre de vigília - não adianta a simulação de se afundar no sono, nem dormir deveras - olho ao redor e revejo lentamente um a um de olhos bem abertos, sem vida, como estátuas de sal, minha "família do pensamento repleta de anões". A artificialidade como maneira de gozar a naturalidade. O beco perdido das minhas idéias. O sono da fuga iminente à espera da aurora boreal: a cicatriz que não me deixa esquecer.

domingo, 15 de março de 2009

Centro



Já fui eu,
já fui outro;
quantos de mim já foram, soltos?
tropeço de mim,
queda de mim,
já foram os outros;
hoje são os memos.
Fumaça de mim;
os cigarros queimados,
o ar; rápido...
onde foram os tantos:
de mim?
Rastro, escombro de mim,
vago,
pendular,
cancioneiro de mim.
A porta, a fresta, a dança microscópica,
olhos de mim,
arrasto de tantos,
suor de mim.
Velocidade, vento,
frio de mim,
aperto de mim,
aleatório, exato.
Entre mim e ti
sempre este lugar:
cheio de mim.